Por: Rafael Ferreira

O julgamento em questão representa a solução de mais uma das controvérsias relacionadas com a aplicação do artigo 178 da Constituição Federal no que diz respeito ao transporte internacional.

A Convenção de Varsóvia, introduzida no ordenamento jurídico brasileiro em 1931, estabeleceu regras para limitação da responsabilidade do transportador, nas hipóteses de transporte de pessoas e mercadorias, a valores preestabelecidos em francos franceses, constituído de sessenta e cinco e meio miligramas de ouro, que poderiam ser convertidos em números redondos na moeda nacional de cada país.

Desde então, as regras estabelecidas na Convenção de Varsóvia passaram por alterações, sendo a última definida pela Convenção de Montreal, de 28/5/1999, aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 59, de 19/4/2006, com a adoção dos limites de responsabilidade em Direitos Especiais de Saque[1].

Dentro desse contexto, entendimentos conflitantes foram sedimentados no Supremo Tribunal Federal. Afinal, a Primeira Turma, no julgamento do Recurso Extraordinário 351.750, ocorrido em 24/9/2009, acolheu a tese de que o princípio constitucional da defesa do consumidor teria o condão de afastar a aplicação da Convenção de Varsóvia, sempre que estes se mostrassem menos favoráveis ao consumidor do que o disposto no Código de Defesa do Consumidor. Por sua vez, a Segunda Turma, no julgamento do Recurso Extraordinário 297.901-5, realizado em 31/3/2006, havia decidido pela prevalência do prazo prescricional de pretensão indenizatória de dois anos, previsto na Convenção de Varsóvia, contra previsão mais favorável do Código de Defesa do Consumidor.

Embora não versassem exatamente sobre o mesmo objeto, essencialmente os dois precedentes citados tratavam da mesma questão jurídica, ou seja, a definição de qual diploma legal deve prevalecer, nos casos de conflito entre o Código de Defesa do Consumidor e as Convenções Internacionais.

A questão jurídica foi solucionada no julgamento do Recurso Extraordinário 636.331, que tratou do tema 210 de Repercussão Geral, ocorrido em 25/7/2017, no qual o Supremo Tribunal Federal fixou tese no sentido de que “Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”.

Importante observar que no voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do referido julgamento, foi expressamente consignado que “a limitação imposta pelos acordos internacionais alcança tão somente a indenização por dano material, e não a reparação por dano moral. A exclusão justifica-se, porque a disposição do art. 22 não faz qualquer referência à reparação por dano moral, e também porque a imposição de limites quantitativos preestabelecidos não parece condizente com a própria natureza do bem jurídico tutelado, nos casos de reparação por dano moral”.

A Ministra Rosa Weber, em seu voto, também consignou o entendimento de que “a Convenção de Varsóvia não cuidou dos danos morais, não cabendo, nessa perspectiva, estender a estes a aplicação dos limites indenizatórios estabelecidos no mencionado pacto internacional”.

Por sua vez, o Ministro Marco Aurélio, citou trecho que constou na ementa do julgamento de Recurso Extraordinário n. 172.720, ocorrido em 1996, com a seguinte redação: “O fato de a Convenção de Varsóvia revelar, como regra, a indenização tarifada por danos materiais não exclui a relativa aos danos morais.”

Mesmo diante dos trechos acima destacados constantes no acórdão, como o objeto do julgamento do Recurso Extraordinário 636.331 tratava de responsabilidade do transportador aéreo internacional por danos materiais decorrentes da perda, destruição, avaria ou atraso de bagagem, as empresas do setor voltaram a sustentar a prevalência das convenções e tratados internacionais também aos danos morais ou extrapatrimoniais.

Assim, em 19/6/2023, no julgamento de embargos de declaração opostos no Recurso Extraordinário 1.394.401, contra acórdão proferido na sistemática da Repercussão Geral (Tema 1240), o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, fixou tese no sentido de que “não se aplicam as Convenções de Varsóvia e Montreal às hipóteses de danos extrapatrimoniais decorrentes de contrato de transporte aéreo internacional”.

 

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[1] Direito especial de saque é um instrumento monetário internacional, criado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1969, para completar as reservas oficiais dos países membros. Seu código internacional ISSO 4217 é SDR. Os direitos especiais de saque são ativos de reserva em moeda estrangeira suplementares definido e mantidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Segundo a cotação extraída da base oficial do Banco Central do Brasil, em 10/8/2023, o valor de um Direito Especial de Saque para compra corresponde à R$ 6,4977.